NAS MÃOS DE DEUS
(A NOITE DE 22 DE SETEMBRO DE 1976)
Na quarta-feira, dia 22 de setembro, pelas 19 horas, saí do meu gabinete na Cúria Diocesana. Tinha acabado o expediente normal meia hora mais tarde. O último atendido então foi o nosso operário Fidélis, que foi assaltado no domingo anterior e vinha pedir um adiantamento em dinheiro. Desci a galeria, mas fiquei conversando ainda uns dez minutos com o P. Henrique Davis, da Catedral. No meu Volkswagen Sedan já estavam sentados o meu sobrinho Fernando Leal Webering, ao volante e, no banco traseiro, sua noiva Maria Del Pilar Iglesias.
Pelas 19,15 horas me despedi, entrei no VW ao lado de Fernando e saímos. Tomamos o caminho de todos os dias. Sem notar nada de extraodinário. Íamos para casa, no Parque Flora. Pilar, que aproveita todas as tardinhas a carona, ficaria no caminho, na Rua Paraguaçu.
Ao entrarmos na rodovia Pres. Dutra (direção São Paulo), um pouco depois do km 13, como um caminhão passasse em alta velocidade, tivemos que manter no acostamento. Ai estava parado um Volkswagen vermelho, que atrapalhou um pouco a nossa entrada na Dutra. Passamos do acostamento para a rodovia e parece que o VW vermelho seguiu atrás de nós.
Passamos pelo viaduto que liga a rua Roberto Silveira com a estrada de Ambaí e o bairro da Posse mas, como fazemos nos últimos meses para evitar um cruzamento perigoso e muito movimentado na praça da Posse, seguimos até o posto de gasolina e dobramos à direita pela rua Minas Gerais. Continuamos por essa rua normalmente. No ponto onde a rua Minas Gerais corta a rua Gama, na esquina esquerda, estava parado um carro de faróis acesos que procurou avançar com rapidez na nossa frente. Fernando avançou mais rápido, pelo que o repreendi. Dobramos, como sempre, à direita, pela rua Gama, daí entrando pela esquerda na rua D. Benedita. Dois carros nos seguiam. Fernando observou: “Parecem malucos, ou estão brigando”. Eu acrescentei: “Aprece mais para a gente não se envolver na briga”. Ele acelerou e assim entramos à esquerda, na rua Moçambique. Neste momento, um VW vermelho nos fechou. Paramos um instante e olhamos indignados. Logo recomeçamos a viagem, sem ainda percebebemos a situação real. Eu estive certo de que era mesmo uma briga de dois carros. Galgamos a rua Moçambique, que é ladeirosa e curta, e no topo dobramos para rua Paraguaçu, que é onde mora Pilar, no fim, na penúltima casa antes de entrar na estrada de Ambaí. Eu disse a Fernando que se aproximasse mais do meio-fio, para Pilar poder saltar sem perigo e os briguentos poderem passar sem nos incomodar.
Uns cinco metros antes do portão de Pilar, o VW vermelho nos cortou pela frente e um outro carro pelo lado. Saltam cionco ou seis homens armados de pistolas, ameaçadores, e se aproximam do nosso carro. Do lado um grita: “É um assalto. Sai logo senão atiro”. Hesitei um pouco, tentando saber de que se tratava. Com palavrões abriu a porta do meu lado e me puxaram . Tropecei e cai, perguntando ainda: “Meu irmão, o que foi que eu te fiz?”.
Com brutalidade, dois elementos me arrastaram e me atiraram no banco traseiro do carro deles, com pancadas na cabeça e no corpo, para eu me acachapar. Ainda vi por dois ou três segundos a cara do que ia no volante, chamando-me atenção s óculos quadrados sem aro. O outro elemento, de cara redonda e rude, tinha a cara marcada por cicatrizes de espinhas infeccionadas. Julgo ter visto ainda Pilar imóvel na frente do portão da casa dela e algumas pessoas, imóveis também, nas portas da padaria que fica logo depois da casa de Pilar, na esquina da rua Paraguaçu com estrada de Ambaí.
Logo o elemento que estava ao lado do motorista se virou com pancadas para mim e me encapuzou. O capuz era de fazenda grossa, parecendo lona. Senti-me asfixiar. Amarrou o capuz, mas ainda pude ver as algemas: eram pretas, talvez de ferrugem. Ainda me algemando, deram o arranque com toda violência, sempre batendo-me na cabeça e no corpo para eu me abaixar. Logo me algemou, primeiro no pulso do braço direito e depois na mão esquerda. Senti que viraram pela estrada de Ambaí, na direção de Nova Iguaçu. Sempre me batia, soltando palavrões. A cena na porta da casa de Pilar deve ter durado uns oito a dez minutos e foi muito violenta.
Depois de uns poucos minutos encapuzado, com voltas do carro sempre em disparadas loucas, perdi totalmente a noção do espaço. Não consegui um só instante identificar os lugares que passávamos. Andamos por estrada asfaltada, por estrada de paralelepípedos, por estrada de barro. Sempre em alta velocidade. Parecia uma viagem de louco. Logo no começo, ouvi o elemento da direita dizer para o motorista: “Este serviço vai render quatro milhas”.
Daí a pouco, começou a me apalpar, à procura talvez de arma ou carteira. Como não encontrasse nem uma nem outra, começou a cortar os botões de minha batina, um por um. E quando descobriu os bolsos, esvaziou-os. Num tinha lenços, óculos de leitura e um terço. No outro, a agenda de bolso, com meus documentos e algum dinheiro e ainda lenços. Tirou tudo o que encontrou. Tirou o relógio cortando a pulseira de plástico.
Depois de corrermos como loucos uns trinta ou quarenta minutos (antes tinha feito duas ou três paradas), saíram do carro e daí a pouco mandaram que eu saísse também: “”Sai...” (com palavrão). Saí puxado. A primeira que fizeram foi tirar toda a minha roupa, deixando-me inteiramente nu. Aí então tentaram enfiar-me na boca o gargalo de uma garrafa de cachaça. Senti nos lábios o gosto e resisti. Não insistiram, mas um derramou a cachaça no capuz. Senti-me asfixiar e cai no chão estrebuchando. Pensei que ia perder completamente os sentidos, mas aos poucos me recuperei.
Eu estava deitado, no lado esquerdo, num chão irregular de pedras e gravetos. E uma distância de 50-100 metros ouvia-se passar algum carro, devíamos estar assim perto de uma estrada.
Começaram os insultos e provocações. Outro me disse: “Chegou tua hora, miserável, traidor vermelho. Nós somos da Ação (não me recordo se disseram Ação, Aliança ou Comando) anticomunista brasileira e vamos tirar vingança. Você é um comunista traidor. Chegou a hora da vingança para você, depois é a hora do bispo Calheiros de Volta Redonda, e de outros traidores. Temos a lista dos traidores”. Depois acrescentou: “Diga que é comunista, miserável”. Ao que respondi: “Nunca fui, não sou, nem serei comunista. O que fiz foi sempre defender o povo”. De vez em quando me davam pontapés.
A certa altura ouvi, numa distância que calculo de 20 metros aproximadamente, a voz de Fernando que gritava: “Não façam isso comigo, eu não fiz nada”. Tive a impressão de que estavam batendo nele. Resolvi então falar: “Deixem o rapaz, ele não tem culpa de nada. O que foi que ele fez?”. Repeti ainda outra vez estas ou palavras semelhantes. Alguém retrucou: “Que nada! Quem ajuda comunista é comunista”.
Começaram a lançar spray no meu corpo. Eu sentia o borrifar e o frio do spray. Tinha um cheiro acre. Pensei que iam me queimar. Depois me disseram duas vezes: “O chefe deu ordem para não matar. Você não vai morrer não. É só para aprender a deixar de ser comunista”. Houve um silêncio mais prolongado e deram ordem de entrar novamente no carro. A cena tinha durado entre 30 a 40 minutos.
Empurraram-me, todo nu, para dentro do carro, novamento no banco traseiro. Sempre encapuzado e algemado. Fizeram-me acachapar ao máximo no banco, sempre às custas de pancadas, depois colocaram por cima de mim umas tiras do que acho que tinha sido minha batina.
O carro arrancou. Quem falava agora no volante era um elemento de voz fanhosa. O outro indivíduo, ao lado do motorista, falava enrolado, dava berros selvagens, como que para me amedrontar. Recomeçou uma corrida selvagem, como anteriormente. O elemento da direita começou a abrir as algemas, o que conseguiu com muita dificuldade. Depois me amarrou fortemente com cordas, primeiros as mãos. Com a ponta da mesma corda desceu até os meus pés e amarrou também fortemente os tornozelos.
Senti que andávamos correndo por estrada asfaltada, ou de paralelepípedos,ou de barro. Às vezes, estávamos mais pertos de lugar mais habitado, pois eu ouvia vozes de crianças e latidos. Paramos duas vezes. Em certo momento, julguei que estávamos perto da minha casa, pois latidos dos cachorros pareciam conhecidos. Sempre em corrida louca. Não falavam. Apenas o elemento da direita acomodava de vez em quando os trapos da batina sobre mim, parace que para não ser visto. Devemos ter andado uma meia hora. Paramos então.
Nu e atado fiquei na calçada. Era uma rua ajeitada, com pouca luz, lembrando alguns bairros de Nova Iguaçu. Na casa defronte, uma luz fraca saia da janela. Tentei desamarrar a corda, mas os nós estavam muito apertados. Passa um carro da esquerda para a direita, bem perto de mim. Faço um gesto com as mãos amarradas. Vêem mas não param. Do outro lado, vejo andando três mulheres. Preferi não fazer sinal algum. Passa um segundo carro da esquerda para a direita também. Não me vê? Nisto se aproxima, do outro da rua em que me encontro, um rapaz. Chegou perto de mim e eu peço: “O senhor pode me desamarrar? Eu sou padre e fui assaltado”. Começa a me ajudar. Nisto chega, vindo da direita, um carro que pára e pergunta: O que aconteceu?”. Digo o que foi. Um senhor dalta, vem me ajudar e corta as cordas e pergunta o que eu preciso. Respondo: “Uma calça”. Ele promete ir buscar, porque mora perto. Eram cerca de 21,45hs.
Juntaram-se alguns homens que me perguntaram o que aconteceu. Tento explicar. Não entendem os nomes das ruas e dois bairros. Pergunto então: Em que bairro de Nova Iguaçu a gente está?”. Acham certa graça e respondem: “O senhor está em Jacarepaguá”. Perguntam ainda se estou ferido. Eu descubro que o spray me deixou todo vermelho.
Daí a pouco, o carro voltou, trazendo uma calça e um blusão. Convida-me em seguida a ir ver o padre da paróquia. Diz que é perto. Despeço-me das pessoas que ajudaram e mostraram interesse por mim, entro no carro e seguimos. Ai o motorista se revela como repórter fotográfico da Manchete, Sr. Adir Mera. Revelo-me como bispo de Nova Iguaçu. E acrescento em tom de brincadeira: “O senhor aprite o furo”. Ele reponde que agiu por solidariedade, que neste caso não é repórter, que é espírita, mas que todos devemos fazer o bem e etc. Chegamos à Casa Paroquial, na Praça Seca. O vigário demora a atender. Neste momento passa uma rural, cheia de pessoas. Adir descobre na rural um amigo major do exército, a quem comunica o ocorrido. Acham necessário irmos à Delegacia de Madureira, para declaração à polícia. Aparece P. Pedro, vigário da paróquia, que me conhece de nome e estranha a minha situação.
No DOPS, fui interrogado pelo Dr. Borges Fortes. Soube então que o meu VW tinha explodido na frente da CNBB e que meu sobrinho Fernando tinha sido encontrado; ele e a noiva estavam a caminho do DOPS. Durante meu depoimento-interrogatóri, avisaram que o Sr. Núncio Apostólico queria me ver. Como demorassem atendê-lo, entrou de repente na sala de depoimento. Depois saiu da sala, dizendo que esperava por mim a o final do interrogatório.
Depois de três horas, chegaram Fernando e Pilar. O delegado Dr. Borges Fortes mandou Fernando para o Hospital Souza Aguiar para fazer exames.
Terminado o depoimento, fui ter com o Sr. Núncio Apostólico. Pelas trrês e meia, saímos o P. David e eu com o Sr. Núncio Apostólico. Fomos primeiro à sede da CNBB, para cumprimentar o secretário D. Ivo Lorcheiter. Diante da sede da CNBB estava o meu VW quase que destruído completamente.
Conversamos um pouco com D. Ivo e, da CNBB, seguimos para o Colégio Santa Marcelina, no Alto da Boa Vista, onde ficamos hospedados com o Sr. Núncio.
Na parte da manhã, recebi a visita do cardeal D. Eugênio, do arcebispo de Niterói D. José Gonçalves da Costa, do bispo-auxiliar do Rio de Janeiro D. Eduardo Koalk. Com este último fui ao oculista, pois se perderam os meus dois óculos no seqüestro. Em seguida, me retirei para o Centro de Estudos do Sumaré, a convite de D. Eugênio, para repousar.
Nova Iguaçu, 27 de setembro de 1976
Dom Adriano Mandarino Hypolito
(A NOITE DE 22 DE SETEMBRO DE 1976)
Na quarta-feira, dia 22 de setembro, pelas 19 horas, saí do meu gabinete na Cúria Diocesana. Tinha acabado o expediente normal meia hora mais tarde. O último atendido então foi o nosso operário Fidélis, que foi assaltado no domingo anterior e vinha pedir um adiantamento em dinheiro. Desci a galeria, mas fiquei conversando ainda uns dez minutos com o P. Henrique Davis, da Catedral. No meu Volkswagen Sedan já estavam sentados o meu sobrinho Fernando Leal Webering, ao volante e, no banco traseiro, sua noiva Maria Del Pilar Iglesias.
Pelas 19,15 horas me despedi, entrei no VW ao lado de Fernando e saímos. Tomamos o caminho de todos os dias. Sem notar nada de extraodinário. Íamos para casa, no Parque Flora. Pilar, que aproveita todas as tardinhas a carona, ficaria no caminho, na Rua Paraguaçu.
Ao entrarmos na rodovia Pres. Dutra (direção São Paulo), um pouco depois do km 13, como um caminhão passasse em alta velocidade, tivemos que manter no acostamento. Ai estava parado um Volkswagen vermelho, que atrapalhou um pouco a nossa entrada na Dutra. Passamos do acostamento para a rodovia e parece que o VW vermelho seguiu atrás de nós.
Passamos pelo viaduto que liga a rua Roberto Silveira com a estrada de Ambaí e o bairro da Posse mas, como fazemos nos últimos meses para evitar um cruzamento perigoso e muito movimentado na praça da Posse, seguimos até o posto de gasolina e dobramos à direita pela rua Minas Gerais. Continuamos por essa rua normalmente. No ponto onde a rua Minas Gerais corta a rua Gama, na esquina esquerda, estava parado um carro de faróis acesos que procurou avançar com rapidez na nossa frente. Fernando avançou mais rápido, pelo que o repreendi. Dobramos, como sempre, à direita, pela rua Gama, daí entrando pela esquerda na rua D. Benedita. Dois carros nos seguiam. Fernando observou: “Parecem malucos, ou estão brigando”. Eu acrescentei: “Aprece mais para a gente não se envolver na briga”. Ele acelerou e assim entramos à esquerda, na rua Moçambique. Neste momento, um VW vermelho nos fechou. Paramos um instante e olhamos indignados. Logo recomeçamos a viagem, sem ainda percebebemos a situação real. Eu estive certo de que era mesmo uma briga de dois carros. Galgamos a rua Moçambique, que é ladeirosa e curta, e no topo dobramos para rua Paraguaçu, que é onde mora Pilar, no fim, na penúltima casa antes de entrar na estrada de Ambaí. Eu disse a Fernando que se aproximasse mais do meio-fio, para Pilar poder saltar sem perigo e os briguentos poderem passar sem nos incomodar.
Uns cinco metros antes do portão de Pilar, o VW vermelho nos cortou pela frente e um outro carro pelo lado. Saltam cionco ou seis homens armados de pistolas, ameaçadores, e se aproximam do nosso carro. Do lado um grita: “É um assalto. Sai logo senão atiro”. Hesitei um pouco, tentando saber de que se tratava. Com palavrões abriu a porta do meu lado e me puxaram . Tropecei e cai, perguntando ainda: “Meu irmão, o que foi que eu te fiz?”.
Com brutalidade, dois elementos me arrastaram e me atiraram no banco traseiro do carro deles, com pancadas na cabeça e no corpo, para eu me acachapar. Ainda vi por dois ou três segundos a cara do que ia no volante, chamando-me atenção s óculos quadrados sem aro. O outro elemento, de cara redonda e rude, tinha a cara marcada por cicatrizes de espinhas infeccionadas. Julgo ter visto ainda Pilar imóvel na frente do portão da casa dela e algumas pessoas, imóveis também, nas portas da padaria que fica logo depois da casa de Pilar, na esquina da rua Paraguaçu com estrada de Ambaí.
Logo o elemento que estava ao lado do motorista se virou com pancadas para mim e me encapuzou. O capuz era de fazenda grossa, parecendo lona. Senti-me asfixiar. Amarrou o capuz, mas ainda pude ver as algemas: eram pretas, talvez de ferrugem. Ainda me algemando, deram o arranque com toda violência, sempre batendo-me na cabeça e no corpo para eu me abaixar. Logo me algemou, primeiro no pulso do braço direito e depois na mão esquerda. Senti que viraram pela estrada de Ambaí, na direção de Nova Iguaçu. Sempre me batia, soltando palavrões. A cena na porta da casa de Pilar deve ter durado uns oito a dez minutos e foi muito violenta.
Depois de uns poucos minutos encapuzado, com voltas do carro sempre em disparadas loucas, perdi totalmente a noção do espaço. Não consegui um só instante identificar os lugares que passávamos. Andamos por estrada asfaltada, por estrada de paralelepípedos, por estrada de barro. Sempre em alta velocidade. Parecia uma viagem de louco. Logo no começo, ouvi o elemento da direita dizer para o motorista: “Este serviço vai render quatro milhas”.
Daí a pouco, começou a me apalpar, à procura talvez de arma ou carteira. Como não encontrasse nem uma nem outra, começou a cortar os botões de minha batina, um por um. E quando descobriu os bolsos, esvaziou-os. Num tinha lenços, óculos de leitura e um terço. No outro, a agenda de bolso, com meus documentos e algum dinheiro e ainda lenços. Tirou tudo o que encontrou. Tirou o relógio cortando a pulseira de plástico.
Depois de corrermos como loucos uns trinta ou quarenta minutos (antes tinha feito duas ou três paradas), saíram do carro e daí a pouco mandaram que eu saísse também: “”Sai...” (com palavrão). Saí puxado. A primeira que fizeram foi tirar toda a minha roupa, deixando-me inteiramente nu. Aí então tentaram enfiar-me na boca o gargalo de uma garrafa de cachaça. Senti nos lábios o gosto e resisti. Não insistiram, mas um derramou a cachaça no capuz. Senti-me asfixiar e cai no chão estrebuchando. Pensei que ia perder completamente os sentidos, mas aos poucos me recuperei.
Eu estava deitado, no lado esquerdo, num chão irregular de pedras e gravetos. E uma distância de 50-100 metros ouvia-se passar algum carro, devíamos estar assim perto de uma estrada.
Começaram os insultos e provocações. Outro me disse: “Chegou tua hora, miserável, traidor vermelho. Nós somos da Ação (não me recordo se disseram Ação, Aliança ou Comando) anticomunista brasileira e vamos tirar vingança. Você é um comunista traidor. Chegou a hora da vingança para você, depois é a hora do bispo Calheiros de Volta Redonda, e de outros traidores. Temos a lista dos traidores”. Depois acrescentou: “Diga que é comunista, miserável”. Ao que respondi: “Nunca fui, não sou, nem serei comunista. O que fiz foi sempre defender o povo”. De vez em quando me davam pontapés.
A certa altura ouvi, numa distância que calculo de 20 metros aproximadamente, a voz de Fernando que gritava: “Não façam isso comigo, eu não fiz nada”. Tive a impressão de que estavam batendo nele. Resolvi então falar: “Deixem o rapaz, ele não tem culpa de nada. O que foi que ele fez?”. Repeti ainda outra vez estas ou palavras semelhantes. Alguém retrucou: “Que nada! Quem ajuda comunista é comunista”.
Começaram a lançar spray no meu corpo. Eu sentia o borrifar e o frio do spray. Tinha um cheiro acre. Pensei que iam me queimar. Depois me disseram duas vezes: “O chefe deu ordem para não matar. Você não vai morrer não. É só para aprender a deixar de ser comunista”. Houve um silêncio mais prolongado e deram ordem de entrar novamente no carro. A cena tinha durado entre 30 a 40 minutos.
Empurraram-me, todo nu, para dentro do carro, novamento no banco traseiro. Sempre encapuzado e algemado. Fizeram-me acachapar ao máximo no banco, sempre às custas de pancadas, depois colocaram por cima de mim umas tiras do que acho que tinha sido minha batina.
O carro arrancou. Quem falava agora no volante era um elemento de voz fanhosa. O outro indivíduo, ao lado do motorista, falava enrolado, dava berros selvagens, como que para me amedrontar. Recomeçou uma corrida selvagem, como anteriormente. O elemento da direita começou a abrir as algemas, o que conseguiu com muita dificuldade. Depois me amarrou fortemente com cordas, primeiros as mãos. Com a ponta da mesma corda desceu até os meus pés e amarrou também fortemente os tornozelos.
Senti que andávamos correndo por estrada asfaltada, ou de paralelepípedos,ou de barro. Às vezes, estávamos mais pertos de lugar mais habitado, pois eu ouvia vozes de crianças e latidos. Paramos duas vezes. Em certo momento, julguei que estávamos perto da minha casa, pois latidos dos cachorros pareciam conhecidos. Sempre em corrida louca. Não falavam. Apenas o elemento da direita acomodava de vez em quando os trapos da batina sobre mim, parace que para não ser visto. Devemos ter andado uma meia hora. Paramos então.
Nu e atado fiquei na calçada. Era uma rua ajeitada, com pouca luz, lembrando alguns bairros de Nova Iguaçu. Na casa defronte, uma luz fraca saia da janela. Tentei desamarrar a corda, mas os nós estavam muito apertados. Passa um carro da esquerda para a direita, bem perto de mim. Faço um gesto com as mãos amarradas. Vêem mas não param. Do outro lado, vejo andando três mulheres. Preferi não fazer sinal algum. Passa um segundo carro da esquerda para a direita também. Não me vê? Nisto se aproxima, do outro da rua em que me encontro, um rapaz. Chegou perto de mim e eu peço: “O senhor pode me desamarrar? Eu sou padre e fui assaltado”. Começa a me ajudar. Nisto chega, vindo da direita, um carro que pára e pergunta: O que aconteceu?”. Digo o que foi. Um senhor dalta, vem me ajudar e corta as cordas e pergunta o que eu preciso. Respondo: “Uma calça”. Ele promete ir buscar, porque mora perto. Eram cerca de 21,45hs.
Juntaram-se alguns homens que me perguntaram o que aconteceu. Tento explicar. Não entendem os nomes das ruas e dois bairros. Pergunto então: Em que bairro de Nova Iguaçu a gente está?”. Acham certa graça e respondem: “O senhor está em Jacarepaguá”. Perguntam ainda se estou ferido. Eu descubro que o spray me deixou todo vermelho.
Daí a pouco, o carro voltou, trazendo uma calça e um blusão. Convida-me em seguida a ir ver o padre da paróquia. Diz que é perto. Despeço-me das pessoas que ajudaram e mostraram interesse por mim, entro no carro e seguimos. Ai o motorista se revela como repórter fotográfico da Manchete, Sr. Adir Mera. Revelo-me como bispo de Nova Iguaçu. E acrescento em tom de brincadeira: “O senhor aprite o furo”. Ele reponde que agiu por solidariedade, que neste caso não é repórter, que é espírita, mas que todos devemos fazer o bem e etc. Chegamos à Casa Paroquial, na Praça Seca. O vigário demora a atender. Neste momento passa uma rural, cheia de pessoas. Adir descobre na rural um amigo major do exército, a quem comunica o ocorrido. Acham necessário irmos à Delegacia de Madureira, para declaração à polícia. Aparece P. Pedro, vigário da paróquia, que me conhece de nome e estranha a minha situação.
No DOPS, fui interrogado pelo Dr. Borges Fortes. Soube então que o meu VW tinha explodido na frente da CNBB e que meu sobrinho Fernando tinha sido encontrado; ele e a noiva estavam a caminho do DOPS. Durante meu depoimento-interrogatóri, avisaram que o Sr. Núncio Apostólico queria me ver. Como demorassem atendê-lo, entrou de repente na sala de depoimento. Depois saiu da sala, dizendo que esperava por mim a o final do interrogatório.
Depois de três horas, chegaram Fernando e Pilar. O delegado Dr. Borges Fortes mandou Fernando para o Hospital Souza Aguiar para fazer exames.
Terminado o depoimento, fui ter com o Sr. Núncio Apostólico. Pelas trrês e meia, saímos o P. David e eu com o Sr. Núncio Apostólico. Fomos primeiro à sede da CNBB, para cumprimentar o secretário D. Ivo Lorcheiter. Diante da sede da CNBB estava o meu VW quase que destruído completamente.
Conversamos um pouco com D. Ivo e, da CNBB, seguimos para o Colégio Santa Marcelina, no Alto da Boa Vista, onde ficamos hospedados com o Sr. Núncio.
Na parte da manhã, recebi a visita do cardeal D. Eugênio, do arcebispo de Niterói D. José Gonçalves da Costa, do bispo-auxiliar do Rio de Janeiro D. Eduardo Koalk. Com este último fui ao oculista, pois se perderam os meus dois óculos no seqüestro. Em seguida, me retirei para o Centro de Estudos do Sumaré, a convite de D. Eugênio, para repousar.
Nova Iguaçu, 27 de setembro de 1976
Dom Adriano Mandarino Hypolito
Um comentário:
Comove-me bastante o artigo. Quem conheceu D.Adriano sabe do que estou falando. Um ser humano único que carregou consigo até o final da vida, uma inabalável fé nas pessoas.
Emanava a todos, independente da classe, formação, raça ou religião, docilidade e vontade de ajudar.
Realmente um bom pastor que encarnou em si o ideal evangélico de Jesus Cristo.
Em mundo sombrio onde a ambição desmedida dos homens excede todos os limites, e a barbárie virou coisa cotidiana, que não assusta mais ninguém, faz muita falta homens como D.Adriano.
É importante que mantenhamos viva a lembrança do caráter deste grande líder que fez brotar no chão da Baixada Fluminense tempos de esperança e renovação.
Parabéns pela iniciativa.
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